Histórias de Moradores da Vila Formosa

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar histórias e depoimentos dos Moradores do bairro..


História do Morador: Marcelo Santos
Local: São Paulo
Publicado em: 11/09/2003

Dona Maria, seu José e rapper Xis

História:

Então, Marcelo, pra gente começar a entrevista eu queria que você falasse seu nome completo, local e data de nascimento.
Boa tarde para todo mundo que está nos ouvindo neste momento. É um prazer estar aqui... (risos) Parece aqueles programas de televisão, sabe? (risos)

Quer dizer, todo mundo que está te ouvindo sou eu e a Stella. (risos) Boa tarde!
O que é que eu tenho que falar mesmo?

O seu nome completo, local e data de nascimento.
O meu nome é Marcelo dos Santos, eu nasci em São Paulo, na Vila Formosa, a minha família morava lá, na década de 70.

E é Marcelo "dos" Santos?
É Marcelo dos Santos. É... eu tiro o "dos", mas o correto é "dos" Santos.

E, escuta, as pessoas costumam te chamar de Xis, né? Por que? De onde veio? Como você quer que a gente chame você?
Para mim tanto faz. Xis é um personagem inventado pelo Marcelo no final de 89. Eu comecei a cantar rap e aí você começa a colocar vários nomes artísticos porque você quer colocar um nome artístico, porque quem canta rap dificilmente canta com nome de Marcelo, assim, sabe? Tem que ter um complemento, alguma coisa mais artística. E aí, na época, antigamente a gente colocava muito nome americano, porque o rap é uma música bem americanizada. E com o passar do tempo a gente foi abrasileirando isso e eu acabei colocando Xis sem ter um porque, assim. Na verdade, eu cantava com outro nome, que era "X-ato", porque uma menina, uma amiga minha falava que eu era muito chato, então eu colocava "X-ato", com um traço. E o pessoal perguntava e eu falava: "Não, é que é 'X-ato' de atitude." Zoando, assim, entendeu? Aí pintou outro grupo de Brasília com o nome de Câmbio Negro que tinha um garoto que fazia sucesso com o nome de X (em inglês), em homenagem ao Malcom X, líder americano que morreu na década de 60. E aí eu acabei colocando "Xis", com "i" e com "s" para diferenciar dele. Mas quando eu mudei para a Cohab o meu apelido era Corinthiano. As pessoas me conheciam mais como Corinthiano. Xis se tornou mais popular por causa da televisão, por causa do rap, esse tipo de coisa. As pessoas me chamam ainda de Corinthiano ou de Marcelo mesmo. Só quem me conheceu agora, na Cohab, me chama de Xis. O pessoal mais antigo me chama de Marcelo ou de Corinthiano.

E antes de vir para a Cohab? Vamos tentar recuperar um pouco a tua infância. Como era lá na Vila Formosa? Como foi a tua infância?
Na Vila Formosa a gente se reunia assim... que eu lembre, quando moleque, os meus avós ainda eram vivos, era aquela coisa de todo domingo você ir para... todos os tios se reuniam e iam para a casa do avô, sabe? Aí tinham aqueles almoços, tudo... Depois que o meu avô faleceu continuou isso ainda - eu acho que por causa da minha avó. Todos os filhos iam lá e eu acho que eu tenho assim uns quatro, cinco tios por parte de pai... E depois que ela faleceu a família se distanciou, cada um foi mais cuidar da sua vida. Tem aquelas brigas de família, tudo. Eu cresci na Vila Formosa, comecei a freqüentar alguns bailes com os meus primos. Desde pequeno, muito moleque eu já freqüentava alguns bailes com eles. Eles eram mais adultos do que eu, com idade de 15 a 18 anos, enquanto eu tinha meus 10, 13 anos, e aí comecei a freqüentar com eles alguns bailes a partir desse momento... Eu acho que a maior parte eu cresci mesmo aqui pela Cohab, Itaquera. A maior parte minha de escola, a maior parte da adolescência eu passei por aqui mesmo. Então, as cosias que eu lembro da Vila Formosa são poucas.

E antes, assim, de você vir ao mundo... Você sabe a origem da sua família, dos seus pais? Eles nasceram em São Paulo?
Então, sei poucas coisas. A minha mãe veio de Uberlândia, ela veio para São Paulo pequena para trabalhar como empregada doméstica. Trabalhou em várias casas de madames aqui, inclusive da Carolina Ferraz, que é atriz e tudo. E a pessoa que arrumou o meu primeiro emprego na Encol foi a mãe da Carolina Ferraz, que eu fiquei uma semana só. Depois disso minha mãe começou a trabalhar aqui. Faz 30 anos que ela trabalha na Febem como atendente. Não aquela Febem tão complicada, mas aquela Febem das crianças pequenininhas. Isso foi a minha mãe, que veio de Uberlândia.

Ela veio sozinha, você sabe?
Eu acho que ela não veio sozinha. Parece que ela veio com uma outra irmã dela, que faleceu, mas ela não veio sozinha, não. Exatamente, ela veio eu acho que com duas irmãs. Uma tia minha está viva ainda, mora no interior de São Paulo e a outra eu acho que deve ter falecido. Eu não sei direito da história. O meu pai, a família do meu pai é toda daqui mesmo. O meu avô veio para cá eu acho que cedo, não sei... Eu sei que todos os meus tios são paulistas, todos nasceram ali na Moóca. E depois da Moóca foram morar para a Vila Formosa.

Você estava contando da Vila Formosa, dos bailes, enfim... você se muda para Itaquera em que época?
Em 1980, quando começou essas coisas de Cohab, assim. Na verdade, entregaram o apartamento em 79. O meu pai ficou reformando o apartamento eu acho que durante um ano, um ano e meio. E aí veio a coisa do meu apelido ser Corinthiano, porque eu morava durante a semana na Vila Formosa, estudava lá e tudo, e aí, conforme o meu pai vinha para cá, no final de semana eu vinha com ele. E domingo era dia de usar a camisa do Corinthians, né? Então, toda vez que eu vinha para cá no final de semana eu vinha com a camisa do Corinthians, porque era época de Sócrates, Zenon... o meu pai era louco por futebol e eu também já era louco por futebol. Então todo mundo via a camisa do Corinthians. Enquanto o meu pai ficava reformando o apartamento a gente ficava jogando bola lá em cima. E todo mundo fazia mais ou menos assim, né? Eu acho que tinham umas pessoas mais apertadas, que quando entregavam a casa já iam morar para lá, já mudavam automaticamente, e algumas que tinham oportunidade de reformar e então ficavam esperando um ano, ia todo final de semana para reformar. E daí que vem meu apelido de Corinthiano, porque ao invés de chamar pelo nome de Marcelo, falava: "Passa a bola, Corinthiano! Vamos ali, Corinthiano!" Eu estava com a camisa do Corinthians direto.

Quantos anos você tinha, nessa época, mais ou menos?
Eu acho que eu devia ter uns 12 anos, 13 anos.

E você lembra da mudança para cá?
Lembro, lembro.

Como foi? Você lembra do dia que vocês mudaram?
Não, do dia eu não lembro. Você está falando da mudança, mudança, assim, mesmo?

É, do dia em que vocês chegaram...
Mudança de caminhão na rua! Eu lembro que eu vim na frente com o meu pai, sem entender direito... Lembranças normais. É que muita coisa... por exemplo, no caso não foi muita coisa porque a gente morava de aluguel na Vila Formosa e muita coisa que a gente tinha em casa e que foi colocando foi sendo comprado novo. Eram coisa novas, então já ia direto para lá. Mas eu lembro que foi um amigo do meu pai com um caminhão pequeno, até, que trouxe poucas coisas. Eu acho que mais geladeira, fogão, essas coisas mais pesadas. Não sei, não lembro direito.

E o que você achou do bairro? A primeira impressão, ou as primeiras impressões?
Eu não ligava para esse tipo de coisas. Na Vila Formosa eu já não estudava junto com os meus primos. Eu estudava numa escola que eu acho que era particular, na época. Eu não esquentava. Eu lembro que a Cohab, na época, não tinha nada do que tem hoje. Hoje a Cohab tem Mc Donalds e na época não tinha. Tinha, assim, para você comprar pão passava peruas de manhã entregando leite em todos os prédios, ou tinham pessoas que eram aqui dos bairros vizinhos, que já eram antigos aqui: Carmosina, Itaquera... que eu acho que essas pessoas sacaram que várias pessoas novas estavam indo morar lá e que não tinha padaria, não tinha mercado. Eles pegavam peruas, compravam um monte de coisas e estacionavam num estacionamento e as pessoas iam lá de manhã e compravam pão, compravam açúcar, compravam todas essas coisas, entendeu? Eu lembro que na Cohab tinham muitos bolsões, havia muitos parquinhos na Cohab. A cada 200 metros, assim, de prédio para prédio tinham bolsões de areia, que hoje não existem mais. Campinhos... não vou dizer playground, mas escorregadores, algumas coisas que você podia ficar brincando ali, jogando bola... coisas que não existem mais hoje. Mas para mim não fazia muita diferença. Eu nunca fui muito acostumado a ficar mudando de casa para casa, entendeu? Eu conheço algumas famílias que já moraram em um monte de bairro, eu acho meio estranho isso aí. A experiência foi natural. Não estranhei escola quando mudei para cá. Eu estudava numa escola pública. Durante dois anos estudei numa escola pública. Tinha saído de uma particular, depois fui estudar em outra particular.

Aonde você foi? Qual escola, aqui?
Aqui eu estudei no Salim, que é uma escola que existe até hoje lá, a Salim Farah Maluf.

É escola pública ou particular?
É escola pública, com o nome do desgraçado! Depois eu fui estudar na escola adventista. Durante quatro anos assíduos, repetindo todo ano! Passava um, repetia o outro; passava o outro, repetia outro; passava outro, repetia o outro... E foi isso.

Como chamava essa segunda escola?
A segunda escola, Colégio Adventista da Vila Matilde. Depois eu fiz o colegial aqui no Liceu Camilo Castelo, que tem aqui em Itaquera, que hoje é uma faculdade, uma universidade, sei lá.

Que é a Unicastelo?
É, que na época era só colégio. Tinha parte de Odonto só, se não me engano.

Era muito diferente a escola pública da adventista?
Quando a minha mãe me matriculou na escola adventista eu achei que eu estava fodido, porque eu estudava na Nossa Senhora do Sagrado Coração, na Vila Formosa, que eram aquelas escolas que você... sabe, assim, década de 80? Você tinha que entrar, você cantava o Hino Nacional todos os dias, você rezava a Ave Maria e o Pai Nosso. Juro por Deus!!! Em fila, assim. Não sei se vocês passaram por isso.

Passamos. (risos)
Todo dia, assim! Eu não acreditava, né, mano! Eu falava: "Caralho! Não acredito nisso!" Você tinha que ir de roupa engomada, camisa passadinha, tinham aqueles bolsinhos... Eu lembro que uma vez eu fui sem meia, eu fiquei de castigo. Foi o maior "auê". E aí, quando eu vim para a Cohab, a Cohab era mais popular, não tinha a estrutura que lá tinha, era mais popular mesmo, não tem nem comparação. Aquelas coisas óbvias. Não era tão organizado.

Tipo o quê, assim, de diferença que você...
Ah, não tinha tantos alunos, não tinha tanta estrutura, não tinha tanto material escolar... também não era paga.

A disciplina era menos rígida?
Com certeza. Com certeza era. Mas eu acho que tinha qualidade, sim. Eu acho que tinha uma certa qualidade, sim. E aí... O que você perguntou? A diferença, né?

É, se você nota muita diferença na escola.
É, eu senti um pouquinho mais assim... a Adventista era mais puxada, porque eu saí da Sagrado Coração... e também eu estava fazendo o primeiro e o segundo, assim, sabe? O primeiro, o segundo e o terceiro, que eu acho que é mais simples. Aí, no Salim eu estudei eu acho que quarta e quinta série, e depois, a partir da sexta eu fui para a Adventista. E quando eu me matriculei na Adventista eu falei: "Puta, agora fodeu de novo, né, mano?" Porque é de crente. Mas, assim, bagunça tinha mais ainda do que nas públicas, porque eu acho que os alunos eram mais mimados, entendeu? Quer dizer, praticamente quase todo mundo ia de perua escolar, a escola era mais organizada mas os alunos eram mais mimados.

Você está falando da escola Adventista... a sua família tem uma orientação religiosa? A sua mãe...
A minha mãe é católica. Eu, por estudar na Sagrado Coração, por estudar na Adventista aprendi a não confiar muito em nenhuma religião do homem. Eu acredito em Deus pra caramba, mas essas religiões elas misturam muito dinheiro, assim, entendeu? Eu acho que isso faz uma lavagem cerebral fodida. Na Adventista o cara falava assim: "Não pode bater punheta, porque se você bate punheta você não vai dormir nunca mais." Sabe? Tinha... Sabe, toda segunda-feira de manhã a gente ia para a Igreja, antes de ir para a escola e aí era sermão e era canto... E aí eu, por mim mesmo aprendi a confiar mais em Deus mesmo do que nas religiões do homem. O meu pai é católico, mas não é daqueles católicos que vai...

É por herança?
É, vai uma vez por mês na São Judas... assim, todo dia 28 vai na São Judas, vai para Aparecida do Norte uma vez por ano. A minha mãe, depende. Se a Universal lançar uma Igreja ela vai ficar assistindo, mas eu e o meu pai a gente dá uma controlada nela para ela não levar todo o nosso dinheiro para eles.

Mas ela é evangélica?
Não. Minha mãe é católica, é evangélica, é... O que conseguirem ludibriar ela, ela vai, coitadinha. E aí a gente fica segurando ela. Mas não tem nada forte, assim. Aliás, na minha família toda não existe, assim... a minha avó era da Assembléia de Deus. A minha avó por parte de pai eu fui muito com ela. Quando moleque eu ia na Assembléia com ela. E a minha avó era foda, porque não tinha televisão. A Assembléia naquela época não tinha televisão, não tinha rádio, não tinha saia, não tinha nada. Mas foi sorte, que foi só a minha avó, porque o resto...

E era na Vila Formosa ou era aqui em Itaquera?
Não, era na Vila Formosa.

E quando você chegou aqui, qual foi a relação, assim, com as pessoas daqui? Colegas...
Foi boa. Não tinha tanta... tinha uma certa violência, porque eu acho que as pessoas que vinham para cá eram pessoas... acho não, tenho certeza. Eram pessoas de classe bem pobre, de classe C, D, E, e F, e de vários pontos da cidade. Então, eu li o livro do... Eu não sei se vocês tiveram oportunidade. Dá uma lida, se der. É o CDD, do Paulo Lins. CDD é a Cidade De Deus. É um bairro igual a Cohab, o mesmo estilo da Cohab que foi feito no Rio de Janeiro. As pessoas não tinham condições e eles fizeram um bairro que fica dentro da cidade, dentro de Jacarepaguá, bem grande, onde várias pessoas de vários lugares vinham morar. E aí neste livro eles contam toda a trajetória do bairro, sabe, assim? Crime, a evolução profissional do bairro, e assim por diante. E a Cohab tinha bastante violência na época e vinham pessoas de classe eu acho que não tão favorecidas e que tinham problemas naturais que tem. A quantidade de droga não era tão grande, a quantidade de armas não era tão grande que nem tem hoje, que não é só na Cohab, mas em toda São Paulo... Mas era legal. Eu lembro dos bailes, que tinha muito aniversário nas casas, que a gente fazia assim: era aniversário do Marcelo. Então limpava a sala, chamava alguém para tocar o som e aí ficava tocando o som e aí todo mundo ia. Era mais legal por causa disso aí, na época.

E o que vocês ouviam?
Ah, as músicas da época! Ah, passou por várias fases. Aquelas músicas, tipo assim... que nem hoje existe uma cena do rock, existe cena do rap, existe cena punk, cena rap, entendeu? Então o que eu posso lembrar é que a cena da época era New Wave, tinha os Kid Abelha, Ultraje a Rigor, RPM, Kiko Zambianque, esse tipo de coisa. Eu lembro assim porque eu sempre fui muito ligado a música, então naquela época eu já curtia bastante. A época do começo do rap, que era Kurtis Blow, Grand Master Flash, Whodini, que também tocava nas festas... Era misturado, assim, bastante... Já tinham muitas, assim... começo do punk, tinha molecada que andava de skate, tudo, mas acabava todo mundo se encontrando junto ali na Cohab. Não era tão diferenciado, assim, que nem hoje que você pega um carro: "Ah, quero curtir Axé, escutar Axé." Pega o carro e vai para o meio do Axé, na cidade, entendeu? Naquela época as coisas funcionavam mais ali na Cohab mesmo.

E tinha um ponto mais específico lá na Cohab, ou que ainda existe, em que vocês se encontravam?
O ponto de maior acesso na Cohab, o mais freqüentado, que hoje não é mais, mas que sempre foi o maior referencial, era a Praça Brasil. E a rua mais famosa era a 11-D, e ainda é. Porque acontecia de tudo na 11-D. Tudo se passava pela 11-D. É uma espécie de Augusta, assim, da Cohab. Ali se encontravam os punks, se encontravam os funções, da época, que era o pessoal que andava de bombeta... digamos que seria o hip hop de hoje. Você encontrava os skatistas, você encontrava as putas, os viados... tudo você encontrava na 11-D. A 11-D era a mais famosa, assim. De domingo todo mundo tinha que ir para a 11-D para ficar parado...

De dia?
De dia, de noite... ou passar de carro pela 11-D para saber o que estava acontecendo, entendeu?

De onde é que vêm, basicamente, as pessoas que moram na Cohab?
Olha, muita gente veio da periferia da zona sul, Jabaquara, muita gente veio da periferia da zona norte, periferia da zona leste, entendeu? A maioria desses lugares. Os meus amigos mais próximos vieram desses lugares assim. E dessa periferia eu acho que do nordeste do país, de Minas... dessas pessoas que vieram para São Paulo, principalmente na década de 70, quando São Paulo começou a crescer... aí eu não vou saber, não está bem claro para mim a evolução de São Paulo, mas quando começaram as pessoas a virem para cá e não dando certo e começaram a ter a procura por casa, tudo, moradia... Eu acho que foi mais... deve estar envolvida com plano de governo, que começou a pintar essas Cohab's, e rolar essa parada.

Depois que chega aqui essa galera toda, eles costumam vender as casas ou eles se fixam mesmo?
Eu acho que 80% está aqui ainda. 80% está aqui ainda porque quem, no Brasil, que você conhece, que é uma família que conseguiu ter uma ascensão, assim? Se você parar para analisar mesmo, as pessoas nascem dentro de uma classe e acabam ficando naquela classe. A maioria: 90, 80%, né? É 10% que consegue ter uma ascensão. A maioria fica na mesma, muitos pioram, acabam piorando por diversos motivos que a gente enfrenta aqui, com dificuldade na vida, que a gente tem, mas eu acho que a maioria está lá, assim. 80% das pessoas estão na Cohab ainda. Eu lembro de muita gente... a maioria, eu lembro, a maioria que mudou para lá está lá ainda.

Marcelo, e esses grupos que se encontravam na Praça Brasil ou... onde é mesmo o lugar que você falou, além da Praça Brasil?
Na 11-D, que é uma rua.

Na 11-D... tinha rivalidade entre grupos? Como rolava isso?
Ah, tinha! Pra caramba!

Era tipo o quê contra o quê?
Eu não fazia muito parte porque eu era muito moleque ainda. Eu saía muito quando eu era moleque, na Vila Formosa, porque eu saía com os meus primos. Em muitos bailes eu não conseguia entrar... porque eu já era meio alto, assim...já era, não. Eu acho que eu cresci muito depois, de 15 para 20 anos. Mas em alguns bailes eu era brecado, eu não podia entrar. Agora, na Cohab eu não freqüentei muito a rua. Eu participava mas não freqüentava muito. Existia rivalidade de New Wave, com os Punks, com os Skin Heads... mas não é porque era da Cohab, é porque era natural mesmo desses estilos ter um confronto, entendeu?

Entendi.
Fora as coisas naturais que tem em todo lugar de periferia, que são os crimes, o tráfico, roubos... que já tinha também na época.

Eu queria que você falasse um pouco mais desse universo da periferia, assim... o que é isso, para você?
A periferia para mim é um lugar que muitas pessoas têm uma má impressão, onde se você acordar de manhã e for para qualquer lugar da periferia, entre cinco e sete horas da manhã você vê um monte de gente, a maioria saindo para ir trabalhar. Se você ficar também das cinco às seis, você vai ver um monte de gente voltando, um monte de dona Maria, um monte de seu José indo trabalhar. A impressão que fica, às vezes, é que a periferia é o pior lugar do mundo para se viver, mas não é. As pessoas que moram lá são dignas também e estão procurando uma vida melhor. É um lugar que é menos favorecido eu acho que em todas as cidades. Não só em São Paulo. Eu tive a oportunidade de conhecer outros estados, entendeu? Ceilândia, as periferias de Porto Alegre, de cidades como Gravataí, do Rio de Janeiro... em todos os lugares é a mesma coisa, você vê que falta informação, falta acesso à população desses lugares à educação, à cultura, à informática... a todas as coisas possíveis e imagináveis. Muitas vezes parece que as pessoas que têm o poder fazem com que as pessoas fiquem nesse lugar e que elas fiquem cada vez mais com a mente atrofiada, que não saibam que existem outras fronteiras que elas podem ultrapassar até, entendeu? Mas é um lugar que eu gosto, me identifico, aprendi a conviver e infelizmente aprendi a ter colegas que morreram cedo demais, aprendi a ver outras pessoas que deram certo também, entendeu? Poucas, mas algumas. E estamos aí. É isso.

Como morreram esses seus colegas?
Morreram assassinados... a maioria, muitos... outros deram certo jogando bola. É isso. Muitos não morreram, ainda estão vivos cumprindo 15, 10 anos de cadeia por assalto, por homicídio, por uma série de coisas.

Como é a diversão aqui na Cohab? Não só para a juventude, mas as pessoas em geral. Como elas se divertem aqui?
A Cohab funcionou muito como cidade-dormitório, entendeu? Antigamente eu acho que ela não era só cidade-dormitório. Eu acho que ela era uma cidade mesmo em que as pessoas iam para trabalhar e ficavam lá, assim, entendeu? Hoje eu vejo as pessoas saindo um pouco mais da Cohab para ir para outros lugares, até porque o capitalismo fez com que os Shopping Center's viessem para cá, então hoje tem Mc Donalds, hoje você tem o Shopping Aricanduva, você tem o Shopping Tatuapé, você tem o Shopping Carvalho, que faz com que as pessoas saiam um pouco do bairro onde ela mora. Antigamente não tinha tanta alternativa assim. Que shopping que tinha há dez anos atrás? O Iguatemi? O Eldorado? Esses Shoppings não eram lugares que as pessoas que moram na Cohab, por exemplo, de Itaquera freqüentavam, entendeu? Então ela era mais do que uma cidade-dormitório antigamente, há dez anos atrás. Hoje eu vejo ela como cidade-dormitório também, onde as pessoas saem de manhã para trabalhar, passam praticamente o dia inteiro fora e voltam à noite, depois da escola e tudo. E no final de semana elas acabam saindo. É aí que eu acho que as pessoas acabam saindo mais para se divertir mesmo, hoje talvez indo mais para Shopping Center e cinema... é o que eu acho também que fez com que tivesse dentro da Cohab uma quantidade bem menor de lazer do que tinha antigamente, entendeu? Antigamente tinham danceterias na Cohab, que não tem mais, tinham aqueles bolsões, que eu falava para vocês, no começo, onde as crianças ficavam brincando, onde eu joguei bola pra caramba... que não tem mais. Então hoje você vê a molecada andando de skate na Cohab, ou andando de motinho, que às vezes os pais dão, ou a molecada sai e vai para o cinema e vai para outros lugares, entendeu? Então o lazer hoje dentro da Cohab, eu acho que é bem escasso, entendeu? Dentro da própria Cohab não tem muito o que fazer.

Cinema só em Shopping?
Cinema só em Shopping.

E no bairro, fora da Cohab? SESC, essas coisas assim?
Tem o SESC, que acho que deve ter uns dois, três anos. É, mas o SESC não é só público da Cohab, é público de Itaquera em geral, assim. Mas não é dentro da Cohab, por exemplo. Do SESC, para você ir para a Cohab tem um ônibus que demora 40 minutos, que é o Tatuapé.

Daí os moradores acabam...
Eu mesmo, a primeira vez que eu fui... e olha que eu gosto pra caralho de futebol. A primeira vez que eu fui no SESC foi quando eu fui tocar eu acho que depois de um ano, um ano e meio depois que ele tinha inaugurado. Mas eu sou um cara que sempre fiquei muito em casa, fui sempre muito caseiro, assim, entendeu? Até por causa da música, assim. Sempre fiquei muito em casa ou sempre estava ligado com coisas do rap, aí eu tinha que sair, tinha que ir para a cidade, tinha que ir para outros lugares aonde o rap estava, e normalmente ele não estava na Cohab. Agora, muita gente freqüenta o SESC, mas não é aquela coisa que todo mundo vai.

E quais são os lugares do rap na cidade.
Hoje muitos lugares. Alguns lugares mais pop's: Vila Madalena, Itaim, onde acontecem festas normalmente, toda semana, toda terça-feira, toda quarta-feira. Alguns bailes de periferia, que são tradicionais já, mas alguns lugares também já centrais, que o acesso é fácil para todo mundo. Então tem o Projeto Radial, que é em frente ao metrô Tatuapé, tem o Club House, que é em Santo André... Às vezes tem alguns lugares tradicionais: o Clube da Cidade, que é na Marechal... Os de bairro mesmo eu lembro de poucos.

E na Cohab? Quais são os lugares do rap na Cohab?
Os lugares em que o Xis faz rap. (risos) Não, na Cohab não tem, assim. Eu faço um evento, assim... a cada três, quatro meses a gente faz um futebol com alguns times da várzea da Cohab, a molecada gosta muito de jogar futebol na Cohab, então teve uma onda da periferia toda de São Paulo, até aqui, esses Societies, assim. Sabe essas quadras Societies, de grama sintética ou de areia? Então as pessoas, eu acho que até por falta, foram invadindo, construindo Cohab's, construindo casas, sumiram esses bolsões, esses campos onde a gente cresceu jogando bola. Aí a molecada... tem muito time de futebol na Cohab, o time de Societies, o time profissional, que é com 11 pessoas... não profissional, mas com elenco de 11 pessoas. E às vezes a gente acaba engolindo essas pessoas do time, fazendo um festival, um mini-festival com quatro times, um mini-torneio e coloca um show de rap junto, consegue um palco, consegue bancar um palco, um som, e faz isso.

Marcelo, como foi o seu envolvimento com a música, antes do rap? De onde surgiu isso?
Ganhei meu som... eu acho que quando eu passei da terceira par a quarta série o meu pai comprou o meu som de um cara do primeiro andar... um aparelho de som, que eu era louco por música, tinha um gravador e ficava escutando rádio e gravando... na época tinha uma rádio que tocava muito rap, que era a Bandeirantes... Não rap, mas música assim, de preto: soul, rithym 'n blues, funk... era Bandeirantes FM. Existiam outras anteriores, mas não era da minha geração. A minha geração pegou a Bandeirantes. E aí o meu pai me deu um som. Eu já freqüentava uns bailes. O meu pai me deu esse som na Cohab, mas eu freqüentava os bailes com os meus primos na Vila Formosa. Aí eu comecei a procurar música. Tudo que tinha envolvimento com música, principalmente música black, eu procurava saber, assim, entendeu? Os programas... Saía matéria em jornal, eu procurava comprar o jornal, comecei a comprar revistas que eram especializadas em música, quando eu fui ver eu estava no meio.

E você estava contando, no dia em que a gente se falou, a respeito de um concurso numa escola. Como é esta história?
No Castelo. Isso aí eu acho que foi 88, 89, sei lá. Tinha uma menina que era a Liège, ela era filha do dono do Castelo, que faleceu e tudo. Hoje ela deve ser dona, não sei.

Qual é o nome dela?
Liège. E ela era de uma banda famosa na época, com músicos importantes até, caras hoje que tocam com o Funk Como Le Gusta, Fernanda Abreu, o próprio Escova, que era o nome da banda... A Liège tocava sax nesta banda, que era a Escova e a Máfia. Vocês conhecem? E ela fez um festival de música no Castelo. Aí eu tinha alguns amigos no Castelo que a gente... aquela época de Legião Urbana... sabe aquela coisa? Ficava tocando Legião Urbana e ficava cantando... aquelas coisa assim, de colégio. Quando ela anunciou que ia ter um festival a gente falou: "E aí, vamos entrar?" Os caras queriam entrar e não sabiam como entrar. Eu falei: "Ah, eu tenho uma letra aí de rap. Vamos fazer?" Aí fizemos. Fizemos um dois ensaios, que não prestou pra nada. (risos) E era uma música assim, fizemos um estilo mais Beastie Boys, com bateria, baixo e guitarra. Bem amador, assim. E aí a gente acabou pegando segundo lugar no Festival. E só pegamos segundo lugar porque a menina lá do grupo que ganhou, que era um grupo de samba, a mulher lá era casada com o cara que estava tocando. Então é lógico que ela não ia deixar a gente ganhar. (risos) A gente ganhou e a gente ainda ganhou 300 reais, assim... quer dizer, sei lá se era cruzeiros. Uma mixaria de dinheiro. Aí a gente foi para o Tatuapé ali e ficamos numa lancheteria lá, comendo e bebendo com o dinheiro. Mas foi muito legal.

Você lembra o nome da música?
O nome da música é A Vida É Só Sua. Era uma música que falava de natureza, assim, entendeu? Eu não tenho mais. Eu tenho até que um dia procurar um pessoal lá do Castelo, até a própria Liège porque eles devem ter isso filmado. Eu lembro que na época quem veio tocar para fechar o evento foi o Gueto. Lembra do Gueto? Que era uma música: "G-U... U-E-T..." O Gueto! Fez o maior sucesso, na época! Era um rap, assim, uns branquinhos pagando de preto cantando rap... Fez sucesso, na época, o Gueto. Eles vieram fechar. Eu tenho que procurar isso aí, porque eu não tenho nem letra, não tenho nada disso. Eu tinha uma foto que eu não sei onde está.

Mas e aí? Depois, como se deu o início da sua carreira musical?
Eu já tinha algumas letras e tem um bairro aqui próximo de Itaquera, que é o XV de Novembro, que tinha um outro grupo que estava também iniciando e eu também estava iniciando, digamos assim.

Como chama o grupo?
DMN. É os garotos que eram do DMN. E um colega em comum, o Dênis, falou: "Olha, vocês têm que conhecer o Xis." Que na época nem era Xis, era Marcelo. E falava para ele e para mim: "Olha, vocês têm que conhecer o LF e o Slick." Aí um dia estava tendo um evento lá na Cohab, de uma escola, que estava rolando um som e este menino que era do grupo foi tocar. Aí o Duda, que era esse amigo em comum, ele foi em casa: "Vamos lá que os caras estão lá embaixo, na escola." Aí eu fui na escola e conheci eles. Isso aí eu tinha um rascunho de uma letra, que era "Precisamos de Nós Mesmos", e na época o DMN, os meninos já estavam no meio e tinham amizade com o pessoal do Racionais, o KL Jay, o Slick tinha amizade com o DJ... pintou um show com os Racionais e eles chamaram o DMN para abrir. O Racionais chamou o DMN para abrir.

Para abrir?
É, o show. E aí eu fui junto neste show. E no próximo eles falaram: "Vamos fazer essa música juntos." Que era a "Precisamos de Nós Mesmos", o rascunho meu que eu mostrei para eles. Aí começamos a cantar juntos.

Você sabe a música, na cabeça, assim?
Eu tenho o disco dela. Não, mas eu não sei mais. Não lembro nem as atuais, quanto mais as antigas.

E DMN é o que?
DMN era uma sigla que significava - ou significa, não sei se eles usam isso ainda - Defensores do Movimento Negro. Uma época a gente parou de usar porque houve um envolvimento muito forte assim, de algumas bandas de rap, na época, com entidades do Movimento Negro: o MNU, o próprio Geledes, que é uma ONG, Soweto... e aí parecia muito que a gente falava o que os movimentos negros queriam, entendeu? Aí a gente deu um breque, usava o DMN como um nome próprio. Mas hoje eu não sei se eles utilizam.

E tecnicamente, como você desenvolveu a musicalidade? Você toca algum instrumento?
Eu não toco nenhum instrumento. Hoje, a música, ela faz com que qualquer um aqui toque, por causa dos computadores e tudo. Então você não precisa ser um Bach, um Beethoven para você fazer um acorde ou tocar uma nota, entendeu? Eu produzo as minhas músicas, sempre escrevi minhas próprias letras, mas agora que eu estou querendo aperfeiçoar... aperfeiçoar não, mas saber que música eu estou fazendo. Às vezes você faz a música mas não tem noção. Você pode cantar mas não sabe o que você está cantando, entendeu? Você não sabe o que é dó, o que é ré...o que é ré, o que é mi, o que é fá. Então só agora que eu estou tendo oportunidade de estudar música e vou entrar neste meio. Mas também eu vou fazer mais teclado. Nada assim, sabe? Eu vou fazer teclado por que? Você está aprendendo a tocar teclado hoje em dia e com um software de computador você toca todos os instrumentos no teclado. Você vai no computador e fala assim: "Baixo." No teclado você toca o baixo. Você: "Guitarra." No teclado você toca a guitarra. "Percussão." No teclado você toca tamborim com o computador, entendeu?

Entendi.
E para o estilo de música que eu faço não...

E na primeira banda de vocês... não sei se vocês chamam de banda, conjunto, grupo...
A gente chama de grupo, é.

Grupo, né? No primeiro grupo de vocês, vocês tinham esse suporte técnico todo? Como era?
Não, não.

Como vocês se ajeitavam?
Hoje os grupos de rap pegam o caminho bem mais andado do que a gente andou. Hoje tem grupo que nunca andou de ônibus, nunca passou por baixo de uma catraca para ir fazer show. Na época em que eu comecei a fazer show... os lugares onde os grupos de rap mais fazem show são em bailes de periferia, assim, bailes organizados pela comunidade... tipo assim, vai: tem um salão dentro da Cohab que é da comunidade e eu quero fazer um evento lá e quero levar o SNJ, que é um grupo de rap. Então eu vou lá na Associação e falo: " Eu queria fazer um evento aqui..." Combino uma bilheteria com eles: 10% do que entrar, 20, 30, número "x" é deles e outro é meu. Contrato o grupo e levo eles lá. Muitos desses lugares funcionam assim. Antigamente, naquela época, não se tocava. A gente tinha que pagar para tocar, entendeu? A gente pagava, entrava e chegava no dono da festa e falava assim: "Pô, deixa a gente tocar uma música aí?" E muitas vezes não, assim. O Thaíde passou por coisas piores, o Jack também... são caras que foram pioneiros aqui, no início. Agora, hoje tem grupo que só anda de avião, só anda de vã, e não passaram pelo que a gente passou. Os suportes que os grupos de rap têm hoje ainda são muito pequenos. Os que têm um suporte razoável é o Thaíde, os Racionais, o Xis, o RZO, algumas bandas mais de ponta, alguns grupos de ponta.

Fiquei curiosa de saber quais as temáticas mais freqüentes nas tuas músicas.
O rap começou aqui no Brasil com uma temática bem forte, tratando de racismo, por influência até de grupos americanos, no caso o Public Enemie e o Boogii Down Productions. Foram bandas que fizeram muito sucesso assim, no final da década de 80, com essas temáticas assim, de Malcom X, de Luther King, de Mandela, de Preto, de Branco, essas coisas todas. Lá nos Estados Unidos hoje não se fala mais nisso, só se fala de diamante, de jóia, de carro, de mulheres... se vocês pararem para ver qualquer clip eles vão estar mostrando relógio, diamante... a questão racial lá e a questão social, principalmente nos que fazem mais sucessos, já não é tão forte assim, entendeu?

E aqui permaneceu?
Aqui houve uma evolução... eu não sei se a palavra é evolução... Musical houve uma evolução porque antigamente a gente fazia... eu me lembro que a primeira vez que eu entrei em estúdio era praticamente artesanal. Não era que nem hoje, que a gente faz música no computador. No primeira vez que eu entrei a gente tinha que pegar a gilete, cortar a fita de rolo para mixar, entendeu? Aí eu cantei uma parte errada, então você pegava a fita: "Essa parte está errada." Você cortava aqui, cortava aqui, tirava essa parte, pegava aqui, pegava o durex e colava. Quer dizer, o primeiro disco do Racionais foi feito assim, o primeiro disco do DMN foi feito assim... não havia computador, e sendo que nos Estados Unidos já faziam com computadores. Musicalmente, aqui a gente evoluiu. Em letras eu acho que também evoluiu porque os grupos não estão presos só às questões raciais, sociais... existem grupos que tratam de diversos temas, entendeu? Em música você não pode... a gente confundia muito aqui o rap achando que o rap ia salvar a periferia, ia salvar todo mundo, o rap era música de protesto, entendeu? O rap não é música de protesto. O rap é música de protesto da mesma maneira que o rock foi, que o jazz foi, que o blues foi... a maioria das músicas nasceram em forma de protesto, entendeu? Aliás, todas até, quase. Provavelmente todas nasceram em forma de protesto. Só que o rap tinha aquela coisa da linguagem. Na periferia é fácil, assim... pelo menos todo mundo acha que é fácil fazer rap porque primeiro todo mundo acha que é excluído, segundo você não precisa ter instrumento musical, você não precisa ter nada, porque você só escreve e canta, então você tem o microfone e a sua letra, você canta, você já é um rapper, você já é um MC. E naquela época a gente tinha uma ligação com as entidades e tudo. Hoje o rap aqui está mais musical, trata de vários temas, existem grupos que falam mais da parte de crime, tratam mais da bandidagem da periferia, outros grupos falam mais de lazer e de onda, falam mais da cultura hip hop, tratam de vários temas. O meu disco é um disco... eu acho que é um mix de tudo, eu não queria fazer um disco centralizado numa coisa só... se vocês tiverem oportunidade de escutar, ou se já escutaram, do começo ao fim eu tentei fazer assim, tipo um filme que fala de amor, fala de lazer, fala de tristeza, fala de músicas contentes, que nem "Os Mano e as Mina", que é tipo um domingo na Cohab, assim...

Qual é o nome?
"Os Mano e as Mina". Então eu procurei abordar várias coisas.

E de onde vem isso de "mano" e "mina"?
Ah, o "mano" e "mina" é um tratamento normal entre a gente: "Oh, fala com o mano, ali!" É gíria da periferia, principalmente de São Paulo, assim. Já não é a de Brasília. Em Brasília já falam mais "Véio." No Rio de Janeiro é "cumpadi". É legal "Os Mano e as Mina" ter feito sucesso em vários lugares, assim, porque é estranho. O pessoal não fala "mano" no Rio de Janeiro, não fala mesmo.

E provavelmente vocês nem conheciam também qual era o tipo de tratamento em outros lugares. Ou conheciam?
Assim, a primeira banda que fez sucesso no rap fora de São Paulo foi o Câmbio Negro, que chegou aqui em São Paulo e que a gente parou para escutar. E na época era legal porque eles falavam só "véio": "E aí, véio? Como é que é, véio? E aí, mano véio?" Mas não é "véio." É "véi": "E aí, véi?"

Eles são de onde?
De Brasília. E é legal, assim, que conforme você vai indo para outros Estados mais distantes você vê que a cultura é diferente, mas as pessoas se identificam pelas coisas que são tratadas nas músicas, pelos temas, tudo. É legal.

E o envolvimento com o Movimento Negro... quer dizer, tem um monte de referências ao Movimento Negro, enfim, você tem uma tatuagem... como aconteceu isso na sua trajetória?
O Movimento Negro para bandas que nem o Xis, o DMN, os Racionais foi importante porque eu acho que deu uma base para a gente, deu uma estrutura, mas eu acho que só mesmo, mas não enquanto banda, assim, entendeu? Para saber que no Brasil existe preconceito racial, que se você for preto as suas condições são piores, que você chegar no mesmo posto que um branco é diferente, que se você for mulher e preta é duas vezes pior, se você for preto e homossexual é duas vezes pior, se você for mulher, preta e idosa é três vezes pior... E assim vai. Então deu uma base para a gente de estrutura mais social até, eu acho, do que para rap, engajamento político, entendeu? A minha tatuagem é por causa do nome do meu selo. 4P é "Poder Para o Povo Preto" e eu tatuei, poderia ter sido outra besteira qualquer.

Ah, 4p! Poder Para o Povo Preto!
Agora, assim... por exemplo, as bandas que tiveram uma ligação forte com entidades negras hoje elas estão todas distantes e fazendo a sua própria atividade política, entendeu? Eu faço a minha política. Eu vendi 20 mil cópias de forma independente, ajudei as pessoas que moram próximas de mim, pessoas que não têm emprego, as pessoas que estavam desempregadas, entendeu? A gente faz todo o trabalho de capa, de foto é feito com pessoas que eu conheço, eu poderia já contratar pessoas conhecidas, mas a gente procura sempre pessoas próximas da gente, e assim vai.

Xis, o que é a cultura hip hop?
A cultura hip hop... são quatro elementos: o break, que é a dança; o grafite, que é a arte; o rapper, o MC, que é o mestre de cerimônias e o DJ, que é o... não músico, mas o responsável pelo som, que faz o som. Então são quatro elementos que andam separados. O rap se destaca mais porque ele é comercializado. Ele gera dinheiro, então no mundo capitalista ele vai ser mais explorado. O rap pode ser explorado de diversas maneiras, enquanto modelo, enquanto músico... nossa! Uma infinidade de maneiras. O cara que dança, que faz grafite nem tanto, entendeu? O grafite ele grafita no muro e fica ali. Às vezes surgem umas exposições, aparecem alguns cursos... O break às vezes também pintam algumas coisas relacionadas à dança e o DJ atua lado a lado com o MC, então muitas vezes ele está ali aparecendo, e faz festa e o mundão gosta de festa, tem muita casa noturna, o mercado é legal. Cultura hip hop é isso aí. Muitos chamam de movimento hip hop, que não existe. Não existe movimento hip hop. Movimento é tipo assim, é algo que foi feito para conseguir alguma coisa e acabar e cultura hip hop não é isso, ela não vai acabar, é maneira de vestir, é maneira de pensar, é maneira de agir, entendeu? Não é que nem o MST: "Ah, queremos terra." Conseguiu a terra e acabou o movimento. Não é isso, entendeu? Não, cultura hip hop é para a vida inteira, o pessoal vai andar, do mesmo jeito vai pensar, vai falar... eu vou continuar falando "os mano" independente da gente conversar daqui a dez anos, que eu vou falar para você: "E aí, firmeza?" Vai ser a mesma coisa, entendeu? Então é maneira de pensar e de agir. E é isso daí a cultura hip hop. No Brasil ela é muito forte. Tem uns 15 anos no Brasil. As pessoas que começaram com ela aqui, os pioneiros foram Thaíde, o pessoal no Largo de São Bento, que ficava dançando break lá na São Bento, depois na Praça Roosevelt: Nelson Triunfo, Nino Brown, MC Jack, o pessoal da antiga.

Voltando um pouquinho, você estava falando que vocês estudou até o 2º Colegial na Unicastelo... chamava Liceu...
Liceu Camilo Castelo Branco.

Como foi? Por que você parou de estudar?
Porque é muito chato, mano, estudar. Porque eu não gosto de escola, odeio escola, acho escola chato! A única aula legal que tinha era de Filosofia. Todas as escolas que eu passei eram um porre.

Pensei que era de História. Fiquei esperando ele dizer de História. (risos)
Não, eu gostava de Geografia. Eu não gostava de história por causa do... quer dizer, primeiro porque, assim, a fórmula... Eu nunca me identifiquei com o que era dado. Eu como aluno negro, numa escola de classe média, vamos dizer, que era uma escola paga, então era eu e sempre mais um e, chutando muito alto, mais dois negros na sala de aula. Nunca me vi, assim... só vi ele falando de Zumbi, mesmo assim eles falavam de Zumbi e você ficava meio assim: "Opa! Zumbi, Saci-Pererê." Eu falava: "Eles vão me tirar, entendeu?" Então eu não gostava, eu nunca gostava de escola. Não era um ambiente, para mim, agradável. Então eu procurei... eu sempre fugi de escola, assim.

E foi por conta própria que você decidiu sair?
Não, não é que eu decidi sair. Você acaba...

Desencanando?
Não é que desencanando. Você vai juntando um monte de coisa. Eu não parei de estudar porque assim: "Ah, que eu vou virar músico e está dando certo." É porque você tinha que trabalhar e tinha que ajudar em casa. Na época do Real eu saía de casa... naquela época não tinha Metrô Itaquera, não tinha Metrô Artur Alvim... o Metrô mais próximo era o Belém. Então eu trabalhava na Avenida Paulista, eu tinha que sair de casa umas 5:30 da manhã, nunca conseguia chegar no horário! Eu tinha que entrar às 8:15 e eu entrava às 8:16 e tinha que levar o cartão para a chefe assinar e aí levava bronca. Aí eu saía de lá às 6:00h, porque eu dei uma puta sorte de entrar no único lugar do banco que trabalhava em período integral. O resto do banco inteirinho eram seis horas, e o que eu consegui trabalhar era das 8:00 às 6:00, e tinha que estar aqui na escola, no Castelo, às... que horas?

8:00 horas?
É, 8:00 horas, 7:30, sei lá que horário que era. Eu nunca conseguia chegar no horário também. Aí eu estudava no Castelo das 7:00 até às 11:00... eu estou falando assim, na época que eu já estudava à noite. Pô! Não tinha como! Então você falava: "Ah, não vou estudar." Minha mãe não queria que eu estudasse, porque já estava aumentando a violência pra caralho, ela não queria que eu estudasse em escola pública, o que eu acho que ela fez bem ela não deixar eu estudar em escola pública, porque deu uma estrutura melhor pra mim, entendeu? Enquanto eu pude estudar em escola paga. E aí eu acabei saindo da escola. Tinha aquele negócio de pagar matrícula e pagar e ir acumulando, e aí era eu que tinha que pagar, entendeu? Não tinha mais graça você estar com 16, 18 anos e sua mãe estar pagando escola paga para você. Não tinha como, também. E aí acabei parando de estudar. Me arrependo, porque eu tinha oportunidade de ter estudado pra caralho, assim, entendeu? De estar formado e tudo. Me arrependo. Espero... Me arrependi, mas eu falava: "Não, eu vou correr atrás das coisas que eu quero. Eu quero informática..." Então comprava várias revistas de informática, sempre gostei de ler, assim, entendeu? Desde moleque. Já faz dez anos que eu tenho o vício de passar em algum lugar, assim, e comprar uma...ou andar com uma HQ no bolso, ou andar com um jornal no bolso, ou andar com uma revista no bolso. Assim, tem a revista Realidade, que é antes da Veja, de dez anos, em casa; tem revista Veja que me interessa, em casa guardada... a primeira vez que eu saí do trampo, que tinha uma grana, assim, eu comprei o computador, entendeu? Então eu procurei suprir a necessidade da escola de outras maneiras, e pretendo assim, agora, que eu estou tendo condições de fazer informática, vou fazer informática. Fazer inglês? Vou fazer inglês. Fazer curso de música? Vou fazer curso. Me especializar, que é o maior saco ir para escola e... Pedro Álvares Cabral, Dom Pedro I. Se essa maneira ainda é a mais correta num país que tem... precisa formar tantas pessoas em tantos campos, você ficar aprendendo coisas que não te interessam, entendeu? Então, forçadamente durante um ano inteiro, entendeu? Puta saco! Estou fora! Eu não gosto de escola! Você é professora?

Sou. (risos)
De História? Eu vou xingar tanto um professor de História, mano, de Minas. Ele passou um e-mail para mim... eu respondo todos os meus e-mails pessoalmente. Então, tem sempre assim, vai, 80 e-mails para responder. A maioria é: "Te amo, te adoro, te quero, você é maravilhoso, você é o melhor homem do mundo..."Porque se você vai passar um e-mail para alguém, para um artista, provavelmente é porque você acaba gostando dele. Mas é lógico, já tem 2 mil pessoas diferentes que passam e-mail para mim. É lógico que vai ter aqueles dez que é contra porque você está apoiando a Marta, porque é contra porque você apareceu na televisão, e o movimento hip hop não deve aparecer na televisão... Que nem, assim, eu gostava muito do Public Enemies, era a banda dos meus sonhos, entendeu? Aí, de 85 a 88 o Public Enemies era aquela banda underground, assim, que era para poucos. Aí, de repente o Public Enemies estoura com o Spike Lee e o mundo inteiro gosta do Public Enemies. Então você olha um cara na rua andando com a camisa do Public Enemies, aquele cara que não tem nada a ver com o Public Enemies, entendeu? Você fala: "Puta, meu! Que merda, né, meu!" Eu vejo umas pessoas assim com o Xis também, porque o Xis já tinha vendido 20 mil cópias dentro do circuito rap, que a maioria das bandas razoáveis ou boas, ou que têm um pouco de sorte acabam vendendo. E aí o Xis ultrapassa isso e eu acho que as pessoas que gostam de rap vêm um monte de playboys cantando "Os Mano, Pô, As Mina, Pá", cantando outras músicas e assim por diante. Então tem uns quatro, cinco que ligam passando e-mail assim. E eu respondo na boa. Me xingou eu xingo também e foda-se! Aí um cara passou um e-mail todo cheio de ti-ti-ti: "Porque vocês ficam com essas gírias, você se veste que nem um moleque, você é um ridículo, onde você pensa que você quer? As pessoas que acreditam em você estão sendo ludibriadas. Já, já você vai estar com o seu kit-rico, que é uma loira e um carro importado..." Aí eu passei para ele. Eu falei: "Olha, obrigado pelo e-mail. A maioria dos e-mails que eu recebo são me agradecendo, são mandando elogios e tudo, e quando eu leio um e-mail igual ao seu eu acho legal, mas eu não estou dando a mínima para o que você está falando. Foda-se também, entendeu? Eu estou fazendo a minha parte, eu acredito no que eu faço, se eu estiver com kit-loira ou não foda-se, é problema meu e paralá-lá-lá-lá... E outra, você nem assina o e-mail que você manda. Você fica se escondendo por uma merda de um e-mail, enquanto eu estou exposto, cada dia que eu passo eu me exponho mais ainda." Ele falou que o rap não estava com nada... E ele é negro, né? Você vê pelo e-mail que ele era negro, tudo.

E ele respondeu, de volta?
Aí agora ele respondeu. E eu demoro para responder, assim, porque não dá para responder tudo, então eu fico sempre uns 20 dias, 15 dias atrasado. Aí eu abri o e-mail ontem e ele respondeu falando que ele era professor da Universidade não sei de onde, de Belo Horizonte, sei lá de que lugar, que o nome dele era tal, que era para eu dar o telefone que ele ia ligar e falar um monte de coisas pessoalmente, que ele esperava isso de mim mesmo, que eu fosse mal educado... (risos) Eu vou ligar pra ele, agora. Vou ligar, não. Vou passar um e-mail pra ele e vou dar meu telefone pra ele.

A galera aqui em Itaquera curte o teu som?
Antigamente não curtia, não. Olhava pra mim meio assim, falando: "Ah, lá vai aquele moleque, lá! Olha lá o rapper!" Tipo assim, sabe, desmerecendo. Assim, no Brasil as pessoas gostam muito de televisão, de mídia, né? No Brasil não tem assim, heróis. Quem é o herói no Brasil? Senna? Pelé? Não sei, não é que nem... Não tem um Che Guevara no Brasil. Tem o que? Tiradentes? Zumbi? As histórias deles foram muito pouco exploradas, a molecada não tem... Então o Faustão fez uma série de heróis, tipo Carla Perez, todo domingo fazia um.
Assim, vários... heróis, ou gente que as pessoas se identificavam, principalmente as pessoas na periferia, que não têm tanto acesso à cultura, esse tipo de coisa. Então na Cohab eu passo, as pessoas me admiram, eu acho, por eu ser alguém conhecido, até, entendeu? Independente do que eu faço. A molecada se identifica mais, os moleques da minha idade, porque eu falo dos temas que fazem parte do dia a dia deles, que é crime, que é droga, que é sexo, um monte de coisa... e faço rap, que é uma música jovem, entendeu? Os mais velhos eu vejo que me olham, assim, com um certo carinho, tipo assim: "Pô, é um moleque daqui, tudo..." Viu crescer, esse tipo de coisa, entendeu? E tem outros que não gostam, que olham com desdém, sei lá. Eu não me vejo, assim, como artista, entendeu? O Xis é um personagem, um artista. Quer dizer, eu vim para cá de carro mas eu ia vir de ônibus, ou de taxi... eu ia passar no banco, aquela hora que você me ligou eu encontrei uma colega, uma menina que faz contabilidade para gente: "Oh, vou te dar uma carona." Ela tinha que vir aqui e deu uma carona. Mas eu não sou artista, assim, entendeu? Não fico andando com jóias, a gente usa corrente, mas é de prata, que um amigo nosso faz e é coisa assim, que custa 30 reais. Não tem aquelas coisas que os pagodeiros têm, sabe? Que pinta o cabelo, que já arranja uma loira, já pega um carro importado e fica dando um rolê... não tem esse tipo de coisa, entendeu? Então eu acho que as pessoas vêm meio que numas, entendeu? O pessoal acha meio estranho, assim, sabe? "Ah, o Xis aparece na televisão, aparece no jornal e sobe à pé para pegar ônibus ou vai de carona, ou anda com o carro da noiva..." Esse tipo de coisa, entendeu?

E como foi fazer a campanha da Marta? Esse engajamento, como foi?
Eu não fiz a campanha da Marta. Eu fiz um show no Pacaembu, apoiei enquanto as pessoas do PT me chamaram, só participei porque o Supla me ligou, que é filho dela. E em todo lugar existe panela, no PT também existe panela... quando eu resolvi sair do DMN, que era o grupo que eu participava, quando eu resolvi me distanciar um pouco de movimentos negros eu resolvi sair por causa desses tipos de coisa de panela, eu poderia formar várias panelas e eu não queria fazer panela nenhuma... torço para que a Marta ganhe, voto nela, mas só ia apoiar se me chamassem, entendeu? Já existe dentro do PT aquela coisa assim, da cultura hip hop, movimento hip hop já lá formado que vários grupos estão lá. Dentro do PT já existem grupos, entendeu? Eu fui chamado, eu participei de um show porque o Supla ligou para mim, senão com certeza não participaria de nenhum. E fui em outro encontro com ela porque ele também me ligou, foi um evento que teve no KVA, senão não participaria, como das outras não participei, como da última, por exemplo. Mas é um partido que eu acredito que é... eu sou simpatizante, eu considero que seja um dos que não são tão ruins, assim, entendeu? E torço para que ela ganhe. Só.

Escuta, você é usuário do metrô?
Sou.

Você lembra da construção do metrô, ou você não pegou esta época?
Todas! Nossa, todas! Foi primeiro no Belém.... primeiro foi Sé, né, vamos dizer assim. Aí, da Sé ia até o Belém. Aí tinha um ônibus que a gente pegava, que era o 3750... nossa, ele não vinha pela Radial, ele ia pelo meio, ali, pela Aricanduva, passava pela Vila Formosa, onde eu morava, vinha pelo Carrão, descia lá em Itaquera e "puf", vinha em Itaquera. Duas horas, uma hora e meia de viagem, até mais, até. Depois do Belém ele veio para Bresser, mas tipo assim, um mês, logo depois já estreou Tatuapé, e ficou a maior cara no Tatuapé, aí os pontos finais eram no Tatuapé. Depois passou um bom tempo... Bom tempo eu vou dizer assim, a cada dois anos, tempo de eleição... dois anos, quatro anos. Elas só são inauguradas em época de eleição, assim, entendeu? Aí passaram mais alguns anos e foi para a Penha. E da Penha veio para Itaquera. Que tempo que foi isso eu não lembro, mas de uns 20, 15 anos pra cá.

Mas até chegar aqui você tinha que ir até a Penha e de lá pegar outra condução para ir até a Cohab?
É. Antes do Metrô a gente ia daqui direto para o Parque Dom Pedro.

Ah, ia direto?
Ônibus da Cohab direto para o Parque Dom Pedro.

Não compensava pegar o ônibus até o Metrô...
Não, antes do Metrô não tinha...

Ah, não tinha?
Não. Eu não lembro quando foi inaugurado o primeiro metrô.

E estação de trem? Do centro de Itaquera, por exemplo?
Não, não era costume de ninguém usar. Principalmente da Cohab a gente não usava.

E a outra estação, a recém inaugurada?
Essa, agora?

É.
Essa agora eu achei que ela ia ter um impacto maior, mas eu acho que o que faz... por exemplo, assim, se eu tivesse que ir para a cidade agora eu vinha para cá, não ia pegar ela, primeiro porque todo mundo acreditava que ia ser metrô mesmo, direto; segundo porque você tem que fazer baldeação e terceiro porque não existem ainda... eles não direcionaram... por exemplo, os pontos de ônibus são todos pra cá ainda, então para você chegar num local, por exemplo, num local que é dentro da Cohab, da Estação José Bonifácio, você tem que ir andando, ou você tem que pegar uma lotação, que são poucas também, porque é mais viável para as lotações elas virem para cá do que elas irem para a Cohab, entendeu? Então eles não colocaram ainda os ônibus, lá. Então as pessoas não usam muito. Quem está usando mais são as pessoas de Guaianazes, porque ela vai parar no centro mesmo de Guaianazes, aí você acaba caindo lá. Agora aqui não modificou quase nada.

E o que você vê de modificação no bairro, assim, desde que você chegou na década de 80 até hoje, em termos de infra-estrutura urbana ou outras coisas também...
Ah, desculpa, você falou de lazer e tem uma casa noturna, que é uma casa de espetáculo, aliás, grande, que é o Jambo Mix, que inaugurou faz mais ou menos um ano, ali praticamente dentro da Cohab. Eu vejo evolução, assim, na Cohab, o quê? O metrô chegando de forma bem reduzida e lenta. E não só aqui, eu acho que na zona sul e na zona norte também é assim, eu acho que deveria ser melhor. A Jacu Pêssego, por exemplo, que o Maluf fez, que, um exemplo, ela deveria custar 100 reais e custou uns 800. Uns 400 devem ter ido para o bolso dele. Foi legal porque ela liga Guarulhos, tudo... é um acesso fácil pra gente. Hoje, dentro da Cohab, as pessoas aprenderam... não sei se elas aprenderam...
... aí assim, eu acho que as pessoas assim, por exemplo... surgiram várias febres na Cohab, a primeira febre foi de vídeo locadoras. Nossa! Várias! Sabe quando teve a parada dos vídeo cassete? A cada 100 metros tinha uma vídeo locadora. É que existiam várias febres. A quantidade de pessoas que trabalha na Cohab é muito grande, entendeu? A quantidade de pessoas desempregada também é muito grande. Aí é aquele sonho de ter o seu próprio negócio, não ter que trabalhar para os outros. Então surgiu uma febre de vídeo locadoras, surgiu uma febre de pizzarias. Assim, você anda na Cohab tem várias pizzarias, tem várias locadoras. Surgiu uma febre, uma época, de... o pessoal fazia uma garagem, comprava três máquinas de vídeo games, ou comprava televisões e colocava vídeo game, a molecada ficava o dia inteiro jogando vídeo game ali, porque não tinha lazer, então a molecada acabava jogando vídeo game, cobrava 50 centavos. Várias e várias febres. Então a Cohab está evoluindo com o tempo. Hoje tem locadoras... uma locadora que é média, de porte médio, existe um Mc Donalds que é próximo da Cohab, existe uma danceteria que é grande, existem postos de gasolina, existem vários caixas eletrônicos, essas coisas, que era absurdo, não tinha antigamente. Assim, não sei quando vai ter banco. Existem... não, hospitais não existem, não fizeram mais hospitais; escolas continuam as mesmas, existem algumas... aquelas escolinhas particulares, assim, sabe, de criança? Então a Cohab foi se desenvolvendo por si própria porque o país, mesmo, e São Paulo não ajuda nada a se desenvolver aqui. Então as pessoas foram criando algumas coisas. Isso eu acho legal, assim, eu acho bacana. Não sei, eu queria montar alguma coisa. Se eu tivesse dinheiro futuramente eu queria montar alguma coisa na Cohab também. Sabe, assim? Uma escolinha de futebol, uma coisa assim.

Existe, assim, uma identidade dentro da Cohab que é diferente de uma identidade de Itaquera bairro? As pessoas falam assim: "Eu moro na Cohab ou eu moro em Itaquera?"
Não! "Eu moro na Cohab" "Cohab de onde?" "Cohab de Itaquera." Com certeza!

Você acha que é mais forte então...
O pessoal até acha que Cohab é Itaquera. Todo mundo que mora na Cohab acha que Carmosina não é Itaquera, que... às vezes até que Itaquera não é Itaquera, entendeu? (risos) Eu tô falando sério! "Eu moro numa Cohab de Itaquera." "Mas Carmosina é onde?" "Carmosina é ali." Sabe aquela coisa que sente assim, que a Cohab é Itaquera e é a Cohab, assim. O pessoal veste a camisa, assim. Se você der uma volta na Cohab você vai ver 15 camisetas, todo mundo, a molecada toda anda com camiseta de time, camiseta da Cohab, assim, porque eles gostam de usar, entendeu? Enchem o saco do Xis para eu aparecer na televisão com camisa de time, camiseta de lá... então você tem que usar dez camisetas. Vou num lugar eu uso uma, vou em outro eu uso outra para agradar todo mundo até. Eles gostam da Cohab. Eu fico às vezes achando que é porque eles acham que as pessoas não sabem... eu tive oportunidade de conhecer outros lugares, entendeu? Lugares bons e ruins. Então muitos moleques acham que a Cohab... que o mundo deles é só a Cohab e às vezes não é. E isso acaba limitando eles. E acaba limitando também o que a Cohab poderia ser, entendeu? Porque se você não conhece alguma coisa você não sabe. Se você não conhece o que é um... se você nunca viu um carro, então você não sabe o que é andar de carro, por exemplo.

Você não expande.
Lógico! Assim, então o meu medo, às vezes é a Cohab ficar limitada. Assim, os moleques nunca foram num Olympia, assim. Só quando teve uma casa de show... que nem, esse Jambo Mix é uma puta casa mesmo, legal, com uma estrutura do caralho, com dois telões do lado, palco, luzes, que foi tocar o Só pra Contrariar, as pessoas não saíam de lá para ver um Só Pra Contrariar. Então é isso que eu acho às vezes, que as pessoas querem mesmo que você fique, que haja uma segregação para você ficar na periferia: "Fica lá com as suas coisinhas para você não descobrir o que é as pessoas virem entregar uma pizza na sua casa, o que é computar, o que é acesso à Internet..."

Mas a Cohab foi feita pensando nisso, né?
É, eu acho que sim. Talvez, se você parar para analisar eles não precisavam fazer as Cohab's. Eles poderiam ir expandindo a cidade... que nem a Anália Franco, o bairro foi expandindo, ele era um bairrozinho. Engraçado, eu nasci na Vila Formosa, eu sei o que é a Vila Formosa, entendeu? Aí eu estava com a minha noiva, precisava comprar uns disquetes e eu estava na Moóca, na menina que faz uns negócios pra gente, tudo, capa, tudo. Eu estava na casa dele e falei: "Onde eu compro?" Ela falou assim: "Vai no Carrefour aí no Anália Franco." Eu nunca tinha ido no Shopping Anália Franco. Quando eu cheguei no Shopping é no meio da Vila Formosa, quer dizer, o bairro foi expandindo para trás, mas foi expandido justamente com esgoto, com saneamento básico, com escolas, com creches... Não, aí você faz um monte de prédios, sem nada em volta e joga todo mundo lá.

E quando vocês chegaram, compraram a casa de vocês tinha iluminação, água encanada, essas coisas?
No começo não tinha, sabia? Acho que assim, logo quando entregaram mesmo, eu acho que não tinha, não. Mas não entregaram, vamos dizer assim, tão precário!

Sem nada.
É, não. Não vou dizer que tinha, mas era um lugar mais rústico do que isso aqui, entendeu? Vaso, pia... você tinha que realmente ir para lá... eu acho que existem pessoas... acho, não. Existem pessoas ainda que estão com a casa do mesmo jeito. Em 20 anos que não tiveram possibilidade de fazer nada, infelizmente. Então você entra, assim, você olha e fala: "Pô, condições, de zero a cinco, 1. 80%, assim. 0, 80%, assim."

Marcelo, e o que você mais gosta deste bairro?
Ah, das pessoas. Das pessoas mesmo. Das pessoas porque se fosse em outro lugar eu ia... Não tem, assim, te dizer: "Ah, eu gosto do Jambo Mix, eu gosto de tal lugar..." Não, eu gosto das pessoas aqui.

E o que você menos gosto.
Eu que eu menos gosto é de quando morrem os moleques que cresceram comigo, assim, entendeu? Que você vê que eu estou tendo uma alternativa para mim e os caras não estão tendo, assim, entendeu? Isso aí que me chateia mais, assim.

E se você pudesse imprimir alguma mudança no bairro, sei lá, como você olharia... o que você desejaria para esse bairro daqui a 50 anos?
Ah, eu fico preocupado com os moleques... que nem, eu cheguei na Cohab com uns 12 anos, dez anos, nove anos, não lembro, sei lá. Eu fico preocupado com os moleques que têm essa idade hoje, entendeu? Eu vi passarem várias gerações de moleques na Cohab envolvidos com droga, com crime, ou que não tiveram oportunidade de freqüentar o castelo, ou a Unicsul...

Como é o nome desta última?
A Unicsul, que é em São Miguel. Então, assim, eu fico pensando nos moleques que estão na rua, lá, agora, andando de skate com 9 anos, 8 anos, tendo acesso à televisão, que estão começando e que daqui a 15 anos vai ser tipo um Marcelo, assim, entendeu? O que eles vão estar fazendo? Música? Vão estar estudando? Vão estar roubando? Vão estar matando? Vão estar freqüentando lugares legais, piores? Então eu fico preocupado com isso aí. Eu fico contente quando abre uma casa noturna que traz cultura pra Cohab, quando tem mais progresso porque as pessoas começam a enxergar de uma forma diferente e ver que elas podem fazer parte daquilo ali, entendeu?

É tranqüila a relação da Cohab com os outros moradores de Itaquera? Tem algum tipo de discriminação?
É, é tranqüila. Eu acho que o bairro acaba se envolvendo, mesmo as pessoas não percebendo. É aquela coisa: "Ah, eu sou da Cohab, sou da Cohab. Sou de Guaianazes, sou de Guaianazes...", mas você tem que ir até o centro de Itaquera porque os bancos estão ali, os despachantes... então você acaba misturando tudo, então é natural as pessoas falarem: "Eu moro na Cohab", e não ter aquela discriminação, entendeu? Pelo menos hoje não tem mais. Há cinco anos atrás... Quando eu estudava no Castelo não era todo mundo que estudava... a maioria das pessoas que estudava no Castelo morava no Parque do Carmo, morava em Itaquera, aqui no centro, que é mais valorizado: "Aonde você mora?" "Na Cohab." "Ah, você mora na Cohab?" Naquela época era, entendeu? Hoje eu acho que não tanto.

Então, tem uma pergunta que a gente faz assim, com pessoas mais idosas, mas vou fazer pra você também. Tem algum sonho que você gostaria de realizar?
Algum sonho meu, particular?

É.
Meu particular?! Ser presidente do Esporte Clube Corinthians! (risos)

Que ótimo! (risos)
Sério, juro por Deus! Vocês são corinthianas? (risos)

Eu não tenho time.
Então, torce para o Corinthians. Já que você não tem, aproveita.

Eu já tenho.
Você já tem? Qual?

O Flamengo.
Ah, você é Flamengo lá no Rio.

Não existe Flamengo no Rio. Flamengo é Flamengo no Brasil inteiro.
Você é carioca?

Não, sou cearense.
Ah, então é por causa da Globo!

Que por causa da Globo...
Lógico que é por causa da Globo.

Por que você é Flamengo?
Eu vou te dizer porque eu sou Flamengo, tá bom? 

Então diga. Por que? Você morou no Rio?
Eu sou Flamengo só há dois anos porque eu fui no Rio de Janeiro e vi o morro descendo cantando o hino e isso arrepiou.. sabe quando você se arrepia toda? Eu não acreditei naquilo.

É que você nunca ficou no meio da Gaviões. Você nunca foi pra Gaviões.
Eu já fiquei, cara!

Quando?
Eu gosto de futebol. Mas isso de dois anos pra cá. Se fosse antes você já era corinthiana.

É, aí eu já era flamenguista, na época. Mas, cara, eu não acreditava naquilo, sabe?
R- É legal! Futebol é legal!

Como é aqui no bairro, a relação com o futebol?
Aqui é hegemonicamente...
Tem uns times de várzea. São vários times. Mas é legal agora porque surgiu uma onda, até pelos grupos de rap, porque muitos grupos de rap usam camisa de times da sua região. Então eu não uso camiseta escrita Itaquera. Eu uso camiseta do Bronx, que é da Cohab, ou camisa do Nem Q Chova, grupos da região, times da região, entendeu? Isso popularizou. Até nos "Mano e as Mina" eu falo: "Vou mandar abraço para o Nem Q Chova, para o Bronx." Falo que o time é o Bronx. Isso popularizou os times, então todos os grupos de rap agora também acabam usando as camisas de time e tudo. Isso é legal porque... pô, time de várzea os caras vão para jogar bola, entendeu? Você tem que estar bem para você jogar, o time tem que ser bom, eles pensam, direcionam assim para um lado positivo, entendeu?

O mais legal ainda é que não está indo para aquela coisa de, assim: "Ah, o meu time é melhor, o seu é pior." Não, os times eles... "Oh, vamos marcar um jogo? Marca um jogo, encontra todo mundo." Sabe? Compra fogos, leva bandeira. E é aquela coisa... que nem, o futebol no Brasil tá uma merda, o estádio não consegue encher, os caras conseguiram estragar com tudo, é mais honesto assim, porque ninguém ganha nada, a torcida não ganha nada, a torcida vai, torce para um cara que tá jogando, às vezes é você que tá jogando, você não vai olhar alguém que está ganhando 300 mil reais, 300 mil dólares por mês, que é o caso do Marcelinho e Rincón e não tá nem aí pra você e é legal, porque a comunidade tá ali unida. Tem vários times na Cohab agora. Nossa, tem... não vou falar uma centena, mas umas três dezenas tem.

O nome Corinthians da estação Corinthians-Itaquera é de que ano?
Ah, de quando foi inaugurada, porque o Vicente Mateus ganhou esse terreno não sei de quem, de qual governo... ele ganhou esse terreno pra conhecer o estádio do Corinthians aqui.

Mas ele não construiu, né?
Ninguém construiu. Eles vão construir lá na Raposo.

Por que? Você sabe?
Não sei. O centro de treinamento de Corinthians é aqui. Eles falam que não tem acesso, que é um lugar de periferia... eles dão um monte de motivos. Na verdade eu acho que eles querem construir num lugar que seja mais valorizado, assim, não sei, financeiramente, ou que dê uma visibilidade assim, para a Copa do Mundo. Essas coisas eles não pensam só: "Ah, vou construir um estádio." Não, eles pensam eu acho que dez coisas à frente.

Então... Você quer colocar mais alguma questão?
Não.
Você tem mais alguma questão que você queira deixar registrada? Falar alguma coisa do seu bairro, da Cohab, que você ache importante registrar?
Da tua vida?
Não, falei tudo, eu acho.

Então a gente super agradece.
Obrigado. Eu queria agradecer a todo mundo que estava assistindo a gente...(risos)

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